Logo que começou a ser produzido em série, o carro dava mostras de que se transformaria em objeto de desejo, símbolo de status e de afirmação social. Poucos se deram conta de que esse sonho de consumo acabaria como entrave para a movimentação de pessoas e o desafogo das cidades. Enfim, mais um dos atentados da humanidade contra a natureza.
Basta imaginar a quantidade de árvores que, ao longo dos anos, foram abatidas para que se abrissem estradas e vias cuja única finalidade é servir ao trânsito dos automóveis. Pior, como os recursos naturais são finitos, aos poucos as cidades vão parando e os custos sociais se elevando, tudo em função de carros imensos que conduzem uma única pessoa, seu orgulhoso dono, em detrimento do transporte coletivo de qualidade e dos táxis e assemelhados.
Já na década de 1970, René Dumont, ativista e professor do Instituto Nacional Agronômico de Paris-Grignon, que se tornou famoso e respeitado como arquiteto da Ecologia Política alertava, também, para a questão do carro e suas consequências nefastas. Tornou-se conhecido, e respeitado, no Brasil somente em 1975, quando o seu ensaio “L’Utopie ou la Mort!”, o último, e mais importante dos seus doze livros, foi publicado pela Paz e Terra, tradução de Mamede de Souza Freitas.
Profético, acoimava de irresponsáveis os que persistiam em ignorar as conclusões do Clube de Roma, que alertavam para as graves ameaças que pairavam sobre a civilização humana, todas elas, agora, facilmente perceptíveis, a partir da premissa irrefutável “um crescimento exponencial da população e da indústria não pode durar indefinidamente, não pode mais prolongar-se por muito tempo, em um mundo finito. Pode-se duplicar uma produção industrial em 10 anos, mas dobrar a cada decênio, durante um século, multiplica uma produção por 1.024. Durante dois séculos… (façam o cálculo). Sobre que bases materiais?”.
Estruturou seu livro em quatro partes e, ao final, não há como deixar de aceitar, senão todas, mas a maioria das suas premissas. Pode-se até tentar rebater todas, ou algumas, inclusive sob o argumento da utopia, mas o fato é que já não se pode negar, teses como o desaparecimento dos recursos não renováveis, poluição das águas e do ar, concentração de renda e aumento da miséria, estão plenamente comprovadas.
Chama a atenção, pela atualidade, o capítulo dedicado ao automóvel particular. De princípio recupera a hipótese de que o favorecimento da aquisição de carros para todos seria a melhor forma de atravancar a vida das cidades. A partir daí, todas as consequências nefastas, tais como o desvio de recursos de setores essenciais como saúde e educação para abrir novas vias, criar alternativas de trânsito, sem falar dos recursos naturais que poderiam ser usados em benefício da sociedade e não apenas de uns poucos.
O tempo passou, os carros tomaram as cidades e o sonho do transporte rápido se tornou pesadelo. Trafega lentamente, aumenta o tempo do percurso e já não existem estacionamentos suficientes. Aqui, portanto, o enorme paradoxo. O símbolo de poder e “status” vai sufocando as cidades, aumentando de tamanho e inflando os egos dos seus orgulhosos donos. Até quando? Não sei.
Alcir Santos
Aposentado