Por: Mauro Villar
Certa vez um observador atento relatou que, diante das leis de proteção ambiental, duas montadoras de automóveis tomaram diferentes decisões: a Ford contratou mil advogados e a Toyota, mil engenheiros. Por mais que se possa pensar na simplicidade desse relato, ele revela um conhecimento profundo sobre como as leis e a cultura operam na resolução de problemas iguais em países diferentes.
Quando aparecia um problema no sistema jurídico americano, a solução era contratar advogados para defender possíveis interesses da empresa – a Ford – diante de um juiz que avaliaria quem teria o melhor argumento para “vencer” a causa. Nesse modelo de resolução de conflito, os advogados se empenham no argumento para ganhar a decisão no tribunal. A intenção não é fabricar carros mais eficientes, mas vencer o debate.
Já o sistema japonês enfatiza que a solução seria consertar o que efetivamente é o problema: carros que poluem. Para isso, a empresa contratou engenheiros para resolver o problema na raiz, garantindo que a imagem do Toyota não fosse questionada. Diferente do modelo americano, aqui a lógica não é “vencer” a causa, mas estabelecer harmonia e consenso.
Seguindo o argumento do observador: o direito não é um conjunto de debates estáticos (p. 251), ele é um fato cultural conectado a contextos locais. Não basta apenas conhecer a letra da lei, mas como o direito é assimilado e aplicado por agentes públicos para a administração de conflitos.
Nesta perspectiva, considerando a legislação viária como uma expressão do nosso sistema jurídico, não temos o debate entre iguais como no caso dos americanos, tampouco a lógica dos japoneses para construir consensos. Tomando a legislação de trânsito como um reflexo do nosso sistema jurídico, enfrentamos uma complexa mistura de culturas, tradições e interesses. Essa realidade se manifesta na nossa justiça como a lógica do “cada caso é um caso”, tornando as “regras do jogo” imprevisíveis para motoristas, além de passível a diferentes interpretações ou arbitrariedade por agentes públicos.
Ao desenvolver um trabalho sobre o Código de Trânsito Brasileiro, a pesquisadora Schmidt (2013) chamou atenção para a aplicação desta lógica. Nele, a autora mostra que leis sobre trânsito tendem a ser construídas para punir motoristas, perspectiva que ela define na sua tese como “paradigma fiscalizatório”. Isso explica o porquê das nossas leis e regulamentos se preocuparem muito mais em construir/aperfeiçoar novos modelos punitivos do que efetivamente regular, ajustar competências e criar consensos.
O Projeto de Lei (PL) 680/24 parece retratar esta lógica. Em que pese o tema principal sobre as transferências das licenças ser favorável à categoria, o artigo quinto (inc. vi) versou sobre a necessidade de mais uma autorização para o motorista quando fosse paralisar o serviço, sem, portanto, especificar a natureza da paralisação, tornando o artigo impreciso e vulnerável a práticas arbitrárias. Outro caso mais recente ocorreu quando a ANTT (Agência Nacional de Transporte Terrestre) emitiu uma multa (mais de 7 mil reais) para um taxista na Paraíba, causando espanto na categoria tanto pelo valor cobrado quanto pela agência que aplicou, por não ser comum a ANTT se envolver neste modal viário.
Além da legislação que versa sobre o táxi, construída sob o escopo de inúmeras autorizações: autorização para trabalhar, para ter pontos, instalar/desinstalar taxímetro, emplacar, desemplacar, pedir aumento, e etc.; e punições regidas pelo Código de Trânsito (artigo 302) que versam sobre crimes cometidos por veículos de aluguel* ser maior do que aquele voltado para carros particulares. A reação em coro dos motoristas profissionais parece ter sido a superação do medo pela raiva.
Para taxistas e motoristas em geral, a PL e a ação da ANTT alimentam um sistema ameaçador. Mantendo o motorista a um estado permanente de alerta e desconfiança em que a marca do nosso sistema não é a garantia de um trânsito seguro, relações de consumo, prevenção aos acidentes ou a sustentação da harmonia e justiça, mas manter um fluxo de arrecadação de taxas/multas e a manutenção da insegurança jurídica como marca estrutural.
Referência Bibliográfica:
GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1997.
MACHADO, Flávio. Motorista profissional que não levar passageiros tem pena aumentada. Consultor Jurídico, 10 abr. 2013. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2013-abr-10/motorista-profissional-nao-levar-passageiros-pena-aumentada/. Acesso em: 5 set. 2025.
SCHMIDT, Vera Viviane. Descentralização federativa e coordenação intergovernamental: um estudo sobre a integração dos municípios brasileiros ao Sistema Nacional de Trânsito. 2010. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.
Mauro Villar é pesquisador e motorista profissional de táxi desde 2004; graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense, possui especialização em Políticas Públicas de Justiça Criminal e Segurança Pública; mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela mesma instituição; e autor do livro “A vida no táxi: uma análise sociojurídica dos conflitos e das regulações no mercado da mobilidade urbana em São Gonçalo”.
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