Por: Mauro Villar
Durante a disputa eleitoral para a prefeitura do Rio de Janeiro em 2024, um dos candidatos alegou que todos os problemas de gestão na cidade teriam a mesma origem: a malandragem*. O termo, de forte apelo retórico e impreciso para analisar a gestão pública, simplifica temas estruturais e expõe a população a falas difusas sem efeito esclarecedor. Embora o recurso do candidato tenha força para influenciar cenários políticos e conquistar a simpatia de seguidores, discursos assim tendem deliberadamente a ocultar problemas em vez de oferecer explicações consistentes.
No contexto da Segurança Pública, esse recurso é um fenômeno que se poderia chamar de segurança do espetáculo, em que o discurso desloca a mensagem para um terreno familiar ao público ao contrapor eixos morais — trabalhador e malandro — e suas variantes contextuais: honesto e desonesto, cidadão e marginal, certo e errado, ordem e desordem. Amplificada pelas plataformas virtuais, essa dualidade transforma a linguagem em ferramenta política de poder, deslegitimando o adversário e convertendo o debate sobre gestão na cidade em um espetáculo de apelo emocional.
Fundada na oposição entre ordem e desordem, essa lógica discursiva se estende à política de trânsito, na qual o discurso inverte o foco da educação e da prevenção para o controle e a punição, transformando motoristas em potenciais infratores. Leis e medidas recentes — como a ampliação dos exames toxicológicos, reajustes das multas e a proliferação de radares e dispositivos eletrônicos — reforçam esse modelo de gestão orientado pela coerção e pela arrecadação.
Mesmo órgãos civis, como os DETRANs, as guardas municipais e departamentos de trânsito — incluindo o DER e a ANTT —, passam a atuar como extensões das forças policiais, reproduzindo práticas de vigilância e repressão sob o argumento de combater a desordem. O resultado é um sistema que onera o contribuinte e consolida a crença de que mais rigidez e multas trarão automaticamente uma cidade mais segura — uma promessa que se renova a cada nova campanha, mas raramente se cumpre no cotidiano urbano.
Longe de produzir alternativas pacíficas para prevenir acidentes e administrar conflitos, ações meramente repressivas tendem a converter bens públicos em mercadorias: autoridades ganham visibilidade e empresas fornecedoras de equipamentos lucram. E, como toda mercadoria, esses bens passam a ser negociados. Diferentemente da mercadoria comum, cujo valor é determinado por leis econômicas, a mercadoria política (MISSE, 2002) adquire valor no mercado político. É mercadoria porque pode ser trocada; é política porque sua circulação ocorre nessa esfera de poder. Assim, recursos públicos transformam-se em bens estratégicos para promover carreiras, influenciar decisões e operar como instrumentos de poder e troca.
Um exemplo é a Lei nº 11.705/2008, conhecida como Lei Seca, criada com o propósito de reduzir os acidentes causados por condutores alcoolizados. Apesar do forte apelo emocional, ainda não há consenso quanto a sua efetividade na redução dos acidentes de trânsito. Parte dessa incerteza decorre da ausência de bancos de dados confiáveis que permitam avaliar a relação entre as operações policiais e as variações no número de acidentes (BARBOSA, 2021, p. 35), o que compromete um diagnóstico sólido sobre os resultados dessa política pública. Isso não significa afirmar que a lei seja desnecessária. O problema está em sua aplicação, que acaba negligenciando outras dimensões igualmente relevantes como a melhoria dos dispositivos de segurança dos veículos, a conservação das vias e as campanhas educativas.
Outro caso ilustrativo são os radares eletrônicos instalados a partir da década de 1990 com o argumento de promover maior segurança viária ao coibir condutores de exceder os limites de velocidade. Desde então, sucessivas resoluções do Conselho Nacional de Trânsito — como as de nº 146/2003, 214/2006, 340/2010 e 396/2011 — estabeleceram parâmetros como a obrigatoriedade de sinalização do equipamento, além da realização de estudos prévios para sua instalação. No entanto, a resolução mais recente nº 798/2020 revogou a necessidade de sinalização de presença do radar, consolidando uma inflexão arrecadatória nas políticas de trânsito — isto é, uma mudança de foco da segurança para a geração de receitas.
O impacto é direto sobre o motorista, que hoje encontra maior dificuldade de defesa diante de autos de infração considerados injustos. Em muitos locais, radares permanecem posicionados estrategicamente próximos de árvores, postes ou passarelas. Ainda que notificar seja uma forma de corrigir problemas, trechos com diferentes limites de velocidades e a frequência com que as resoluções mudam, confunde o condutor e colocam fiscalização e armadilha como termos equivalentes. Tal política contraria o espírito do Código de Trânsito Brasileiro, que no artigo nº 74 estabelece que a educação para o trânsito deve ser prioridade para todos os integrantes do Sistema Nacional de Trânsito.
Nas ruas, esse reflexo se manifesta no trabalho dos agentes de trânsito, que atuam com base na própria experiência, reagindo a ocorrências já consumadas. Em casos de roubo de veículos, por exemplo, o registro feito pela vítima não é integrado a um banco de dados nacional — medida que poderia aumentar as chances de recuperação do veículo. Cada delegacia, batalhão ou secretaria de trânsito opera com sistemas cartoriais próprios e indicadores isolados, o que gera impasses para o cidadão na hora de comunicar furtos ou roubos. E como cada força policial atua em uma área distinta — a Polícia Rodoviária Federal nas vias federais, a Polícia Militar nas vias estaduais e as Guardas Municipais no perímetro urbano —, o problema se consolida dentro desses núcleos fragmentados.
Essa falta de integração compromete o trabalho conjunto das instituições e atinge inclusive os próprios policiais, também reféns de uma lógica reativa. O resultado é a redução significativa da eficácia das operações e investigações, especialmente daquelas que dependem da rapidez no tratamento das informações para o mapeamento de áreas, a investigação de crimes e o registro de acidentes. Assim, o condutor encontra um Estado altamente eficiente para multar, mas burocrático e lento para garantir sua segurança e a proteção dos seus bens — um ônus que recai, sobretudo, sobre quem não possui seguro automotivo e depende do carro para sustentar a família.
No limite, a malandragem deixa de ser um traço cultural para se tornar uma categoria política, mobilizada estrategicamente para mascarar desigualdades e deslocar responsabilidades, transfere aos motoristas a culpa por problemas que têm origem na própria gestão do Estado — uma gestão que oculta deficiências estruturais e expõe, em seu lugar, objetivos políticos. Se o trânsito é compreendido como um sistema — termo mencionado 36 vezes no Código de Trânsito Brasileiro —, o palco das disputas eleitorais transforma esse sistema em um espetáculo. Frases de efeito, promessas imediatistas e alianças entre políticos e agentes de segurança sabotam a construção de uma política pública pensada para o longo prazo, substituindo a gestão planejada e eficiente pela conveniência do improviso.
(*) Fontes:
BARBOSA, Páris Borges. O bêbado e o monstro: representações, classificações e sensos de justiça entre policiais rodoviários federais no estado do Rio de Janeiro. 2021. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais e Jurídicas) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2021.
MISSE, Michel. Rio como um bazar: a conversão da ilegalidade [arquivo PDF]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2002. Disponível em: arquivo pessoal. Acesso em: 15 out. 2025.

Mauro Villar é pesquisador da Universidade Federal Fluminense e autor do livro “A vida no táxi: uma análise sociojurídica dos conflitos e das regulações no mercado da mobilidade urbana em São Gonçalo”.
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